JustiçaPenal

A voz do réu colhida no interrogatório pode ser usada sem o seu consentimento como padrão vocal para fins de elaboração de laudo pericial fonético?

Dispõe o art. 5º, LIV, da CF/1988, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

O art. 5º, LXIII, da CF/1988, também descreve que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”, como forma de garantia ao direito da não autoincriminação, já que o acusado/investigado não é obrigado a participar da produção de prova que possa ser usado contra si mesmo, tudo em atenção do princípio do nemo tenetur se detegere.

Aliás, na ADPF n. 444/STF, em que se discutia a não recepção, pela Constituição da República, do instituto da condução coercitiva, a Corte Suprema registrou expressamente que o “direito ao silêncio e o direito a ser advertido quanto ao seu exercício são previstos na legislação e aplicáveis à ação penal e ao interrogatório policial, tanto ao indivíduo preso quanto ao solto – art. 6º, V, e art. 186 do CPP. O conduzido é assistido pelo direito ao silêncio e pelo direito à respectiva advertência”, o que bastaria para atestar o reconhecimento do status constitucional do Aviso de Miranda.

Para relembrar, “em 1966, no caso Miranda versus Arizona, a Suprema Corte Americana absolveu o acusado que havia sido condenado com base em confissão obtida sem que tivesse sido informado de seu direito a ser assistido por um advogado e permanecer em silêncio. A partir de então, consolidou-se nos EUA o dever de os agentes policiais, no ato da prisão, comunicar ao acusado sobre o seu direito de não responder e de ser assistido por um defensor, bem como o de que tudo que disser poderá ser usado contra si. Fernando Capez lembra que isto pode ser observado “nas produções de Hollywood, onde o policial, após deter o bandido (bad guy), profere a célebre frase: ‘Você tem o direito de permanecer calado e tudo o que disser poderá ser utilizado contra você no tribunal’”[1]. Nos EUA e no resto do mundo esses direitos ficaram conhecidos como Miranda Rights ou, entre nós, como Aviso de Miranda. Nos EUA e no resto do mundo esses direitos ficaram conhecidos como Miranda Rights ou, entre nós, como Aviso de Miranda” (Alberto Zacharias Toron e Renato Marques Martins. O STF começa a construir as ‘regras de Miranda’ no Brasil. Disponível em https://prerro.com.br/o-stf-comeca-a-construir-as-regras-de-miranda-no-brasil/, acesso em 20/4/2025).

Na esfera ordinária, o artigo 186, caput, do Código de Processo Penal, prevê o direito de o acusado permanecer em silêncio no interrogatório sem que isso lhe cause prejuízo, pois é o único meio de defesa pessoal do réu (autodefesa).

Da mesma forma, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto n. 592, de 6/7/1992, estabeleceu à pessoa investigada/acusada a garantia “de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada” (art. 14, item 3, letra ‘g’).

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada pelo Decreto n. 678, de 6/11/1992, segue na mesma linha:

ARTIGO 8
Garantias Judiciais
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
[…]
g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;

O direito ao silêncio é, conforme afirma o doutrinador Luiz Flávio Gomes, uma parte do todo, porque essa garantia constitucional “[…] constitui somente uma parte do direito de não autoincriminação. Como emanações naturais diretas desse direito (ao silêncio) temos: (a) o direito de não colaborar com a investigação ou a instrução criminal; (b) o direito de não declarar contra si mesmo; (c) o direito de não confessar e (d) o direito de não falar a verdade” (Princípio da não autoincriminação: significado, conteúdo, base jurídica e âmbito de incidência. Disponível em <https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2066298/principio-da-nao-auto-incriminacao-significado-conteudo-base-juridica-e-ambito-de-incidencia>, acesso em 20/4/2025).

Dessa forma, o investigado/réu possui a faculdade de “ficar em silêncio”, de “não comparecer” e de “não colaborar” com os atos investigatórios, processuais ou probatórios, principalmente quando dependerem de um comportamento ativo pessoal (exemplo: participar do reconhecimento pessoal, depor em interrogatório, fornecer padrão vocal para a realização de perícia fonética, etc), afinal, determinados atos afetam sua esfera jurídica probatória.

Assim, se o investigado ou réu não for cientificado do Aviso de Miranda, ou seja, do direito de ficar em silêncio e do direito de não produzir prova contra si mesmo, a prova deverá ser considerada inadmissível em razão da ilicitude (art. 5º, LVI, da CF/1988).

É o que também preceitua o art. 157 do Código de Processo Penal:

Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
§ 1º. São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
Segundo a lição dos professores Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e Ada Pellegrini Grinover, “o ato processual, praticado em infringência à norma ou ao princípio constitucional de garantia, poderá ser juridicamente inexistente ou absolutamente nulo; não há espaço, nesse campo, para atos irregulares sem sanção, nem para nulidades relativas” (As nulidades no processo penal. 7ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 25).

Ainda, devemos esclarecer que o direito ao silêncio ou o direito de não produzir prova contra si mesmo não tem serventia se a pessoa investigada/acusada, geralmente leiga, não tiver ciência sobre tal garantia constitucional.

Ora, são se pode presumir que uma pessoa conheça do direito ao silêncio, ou em quais circunstâncias ou ocasiões pode exercê-lo (e em qual extensão), impondo-se aos agentes públicos e ao juiz, por lealdade processual, o dever de comunicação e informação.

Veja-se que, para muito além da hipótese do interrogatório diante da falta do Aviso de Miranda, o STF já declarou a nulidade em alguns casos:

a) o réu não pode ser obrigado a participar da reprodução simulada do crime (HC n. 69026, julgado em 10/12/1991. Relator: Min. Celso de Mello);
b) “conversa informal” com o investigado, que estava sendo gravado clandestinamente (HC n. 80949, julgado em 30/10/2001. Relator: Min. Sepúlveda Pertence);
c) depoimento de testemunha no momento em que passa a assumir o status de investigada e não é comunicada de seus direitos (HC n. 136331, julgado em 13/6/2017. Relator: Min. Ricardo Lewandowski);
d) “entrevista” realizada no momento da busca e apreensão (Rcl n. 33711, julgada em 11/6/2019. Relator: Min. Gilmar Mendes);
e) coleta de padrões gráficos oferecidos pelo investigado para a realização de perícia grafotécnica (HC n. 186797, julgado em 12/10/2020. Relator: Min. Celso de Mello; HC n. 186797 AgR, julgado em 3/7/2023. Relator: Min. Nunes Marques);
f) inquirição realizada no momento da prisão em flagrante (RHC n. 170843 AgR, julgado em 4/5/2021. Relator: Min. Gilmar Mendes; RHC n. 207459, julgado em 25/4/2023. Relator: Min. Gilmar Mendes);
g) abordagem/contato policial com o investigado solicitando esclarecimentos sobre os fatos apurados (RE n. 1158507 AgR, julgado em 19/6/2023. Relator: Min. Ricardo Lewandowski; Relator para o acórdão: Min. Edson Fachin).

Em caso específico, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o padrão vocal obtido do réu em interrogatório somente pode ser utilizado na comparação de voz em perícia se houver prévia e expressa concordância do acusado. Extrai-se da ementa do julgado:

PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO. QUALIFICAÇÃO E INTERROGATÓRIO DO ACUSADO. REGISTRO MEDIANTE GRAVAÇÃO EM MEIO AUDIOVISUAL. UTILIZAÇÃO DO PADRÃO VOCAL DO ACUSADO OBTIDO DURANTE A AUDIÊNCIA PARA FINS DE COMPARAÇÃO COM VOZ ATRIBUÍDA A UM DOS INTERLOCUTORES INTERCEPTADOS. NECESSIDADE DE CONCORDÂNCIA EXPRESSA DO ACUSADO. PRINCÍPIO DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. ART. 5º, LXIII, DA CF/88. NEMO TENETUR SE DETEGERE. AUSÊNCIA DE PRÉVIA ADVERTÊNCIA DE QUE A QUALIFICAÇÃO E O INTERROGATÓRIO GRAVADOS PODERIAM SER UTILIZADOS PARA FUTURA PERÍCIA. AUSÊNCIA DE CONSCIÊNCIA DO ACUSADO NA PRODUÇÃO DA PROVA QUE LHE POSSA SER DESFAVORÁVEL. ILEGALIDADE CARACTERIZADA. RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.
I – A jurisprudência desta Corte Superior firmou-se no sentido de que o direito ao silêncio, previsto no art. 5º, LVIII, da Constituição Federal, deve ser interpretado de forma extensiva, sendo assegurado ao investigado ou ao réu o direito de não produzir prova contra si mesmo (princípio da não autoincriminação ou do nemo tenetur se detegere), razão pela qual não pode ser obrigado a fornecer involuntariamente qualquer tipo de informação ou declaração que possa incriminá-lo, direta ou indiretamente.
II – De igual forma, o direito a não autoincriminação também permite ao investigado ou réu se recusar a fornecer qualquer tipo de material, inclusive de seu corpo, para realização de exames periciais, ressalvadas as hipóteses legalmente previstas, como para fins de identificação criminal (art. 5º, LVIII, da Constituição Federal, regulamentado pela Lei n. 12.037/09), bem como para a formação do banco de dados de perfil genético de condenados por crimes hediondos ou delitos dolosos praticados com violência de natureza grave contra pessoa (art. 9º-A da Lei de Execução Penal, incluído pela Lei n. 12.654/12).
III – “Aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado tem, dentre outras prerrogativas básicas, (a) o direito de permanecer em silêncio, (b) o direito de não ser compelido a produzir elementos de incriminação contra si próprio nem de ser constrangido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa e (c) o direito de se recusar a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos probatórios que lhe possam afetar a esfera jurídica, tais como a reprodução simulada (reconstituição) do evento delituoso e o fornecimento de padrões gráficos ou de padrões vocais para efeito de perícia criminal” (HC n. n. 99.289/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe-149 de 04/08/2011, grifei).
IV – A concordância do recorrente quanto à gravação do interrogatório em meio audiovisual, bem como eventuais respostas às perguntas formuladas, não configuram, por óbvio, autorização prévia para que o material registrado na mídia eletrônica, notadamente o seu padrão vocal, seja utilizado para elaboração de exame pericial destinado a identificar suposto autor dos crimes imputados, mediante comparação de sua voz com aquela atribuída a um dos interlocutores das ligações telefônicas interceptadas.
V – Vale dizer, conquanto não tenha sido coagido a participar do ato ou à responder às perguntas eventualmente formuladas, a ausência de consciência do recorrente de que o ato poderia ser utilizado para posterior exame pericial impede que o material obtido pela gravação de sua voz (padrão vocal) seja encaminhado para perícia sem sua anuência expressa, sob pena de afronta ao princípio da não autoincriminação.
VI – A participação do acusado na produção de prova que possa ser utilizada em seu desfavor pressupõe consciência e voluntariedade. Ausentes qualquer delas, a prova obtida será ilegal. Precedentes.
Recurso ordinário provido para determinar que a utilização do padrão vocal do recorrente, obtido durante a gravação em meio audiovisual de sua qualificação e de seu interrogatório judicial, seja condicionada à expressa anuência do recorrente e, subsidiariamente, para que eventual laudo já elaborado seja desentranhado dos autos, não podendo ser utilizado para a formação do convencimento do julgador, salvo expressa concordância do recorrente (STJ. RHC n. 82.748, julgado em 12/12/2017. Relator: Min. Félix Fischer).

Sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal decidiu que “o privilégio contra a autoincriminação, garantia constitucional, permite ao paciente o exercício do direito de silêncio, não estando, por essa razão, obrigado a fornecer os padrões vocais necessários a subsidiar prova pericial que entende lhe ser desfavorável” (STF. HC n. 83096, julgado em 18/11/2003. Relatora: Mina. Ellen Gracie).

Com efeito, em se tratando de áudio coletado em interrogatório, o direito ao silêncio e o direito de o acusado não produzir prova contra si mesmo não diz respeito somente ao conteúdo do depoimento, visto que tal garantia deve ser ampliada em razão do princípio do nemo tenetur se detegere.

O que se quer dizer é que, se o áudio do interrogatório pode ser usado contra o acusado em futura perícia, deve ele ser advertido disso, para que decida se deve ou não falar em juízo. Se tal advertência não for realizada previamente pela autoridade, pensamos que o uso do áudio coletado no depoimento (policial ou judicial) não pode servir como meio de comparação em eventual perícia fonética (exemplo: comparação da voz existente nos áudios de interceptações telefônicas ou mensagens eletrônicas com a voz existente no áudio coletado no interrogatório).

Autor: Fabiano Leniesky, OAB/SC 54888. Formado na Unoesc. Advogado Criminalista. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduado em Advocacia Criminal. Pós-graduado em Ciências Criminais. Pós-graduado em Direito Probatório do Processo Penal. Pós-graduado em Crimes de Lavagem de Dinheiro.

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